8 de maio de 2015

"Mate-a, mate-a, se mate"



1º dia

Eu: “conte-me sobre sua infância.”
Amanda: “ruim”
Eu: “por quê?”
Amanda: “violência... abuso”
Eu: “quem abusava de você?”
Amanda: “meu pai”
Eu: “onde ele está agora?”

Ela desviou o olhar.

Amanda: “não sei”
Eu: “que tipo de abuso ele fazia com você?”
Amanda: “todos”
Eu: “ele a deixava brincar com outras crianças?”
Amanda: “sim... eu era feliz quando... ele não bebia”

Peguei alguns desenhos que estavam ao lado da mulher.

Eu: “você quem desenhou?”
Amanda: “sim”
Eu: “quem é essa criança? Você?”
Amanda: “sim”
Eu: “e sua mãe?”
Amanda: “não tenho mãe”
Eu: “não se lembra dela?”
Amanda: “não. Mas lembro do que me disseram sobre ela”
Eu: “o que disseram?”
Amanda: “eles disseram que ela era uma ótima pessoa... era”
Eu: “eles?”
Amanda: “esqueça o que falei”

Eu queria apenas saber quem “eles” eram. Ela foi tímida no começo, mas se abriu com o tempo. Espero poder ajudá-la.


2º dia

Eu: “poderia me contar sobre sua adolescência?”
Amanda: “feliz”
Eu: “por quê?”
Amanda: “Bob”
Eu: “quem é Bob?”
Amanda: “amigo. Ele me ajudou quando eu estava entrando em depressão”
Eu: “onde ele está agora?”
Amanda: “ajudando outras pessoas como eu. Sinto falta dele. Bob sempre assustava meu pai quando ele chegava bêbado em casa”
Eu: “como ele o assustava?”
Amanda: “não sei”
Eu: “se lembra do dia que você veio?”
Amanda: “17 anos. Eu matei um padre. Me encontraram encolhida em um canto”
Eu: “por que matou o padre?”
Amanda: “eles me mandaram. Disseram que ele era mau. Na entrada da clinica, eles quebraram o pescoço da recepcionista. Mas isso não fez com que eu saísse daqui. Só fez com que me dopassem.”
Eu: “quem são eles?”

Ela desviou o olhar como fez no dia anterior.

Amanda: “não sei”
Eu: “tem que me contar alguma hora...”
Amanda: “outra hora. Hoje não”

Por que ela fica tão agitada quando pergunto sobre “eles”?


3º dia

Ela estava dormindo. Achei melhor não perturbá-la.


4º dia

Não conversamos. Ela me deu o desenho de uma flor com algumas pétalas caindo.


5º dia

Ela estava nervosa. Irritada com algo. Achei melhor não perturbá-la.


6º dia.

Eu: “com quem você estava gritando ontem?”
Amanda: “comigo mesma”
Eu: “por quê?”
Amanda: “é confuso. Minha mente é confusa. Ela inventa vozes que me perturbam... e imagens que me deixam aterrorizada. Além disso, quanto aos meus sentimentos, sinto tudo ao mesmo tempo. Raiva, alegria, tristeza, dor, amor, ódio... acho que é por isso que você me vê mudar de um dia para o outro”

Eu sorri.

Amanda: “me desculpe. Eu não deveria ter dito isso”
Eu: “por que não?”
Amanda: “prometi guardar para mim mesma.”
Eu: “eu estou aqui para ajudá-la. Não contarei sua vida para ninguém.”
Amanda: “não sei se posso confiar”

Então são as vozes. Fiquei feliz de ela ter dialogado um pouco mais comigo. Ela está confiando mais em mim.


7º dia

Ela está gritando consigo mesma outra vez. Melhor não atrapalhá-la.


15º dia

Eu: “me conte como se sente agora”
Amanda: “normal”
Eu: “não está sentindo nada?”
Amanda: “vontade de sair daqui”
Eu: “prometo que a tirarei daqui, mas primeiro tenho que ajudá-la”
Amanda: “a quê? A fazer as vozes pararem? Ninguém pode fazer isso. Estão na minha cabeça”
Eu: “ajudar pelo menos a controlar seus sentimentos. A se controlar.”

Ela estava nervosa. Resolvi não atrapalhá-la.


16º dia

Amanda: “eles estão falando agora”
Eu: “o que eles dizem?”
Amanda: “para matá-la. Não agüento mais. DEIXEM-ME EM...”
Eu: “SE CONTROLE! Ignore-as. Tente ignorá-las”
Amanda: “é impossível”
Eu: “apenas tente. Olha... darei-lhe isso”

Dei uma pequena caixa de som com fones de ouvido.

Amanda: “obrigada. Mas no que isso vai me ajudar?”
Eu: “quando ouvi-los outra vez, aperte o play”

Ela colocou os fones e logo se acalmou. Deitou-se em sua cama e eu saí.

20º dia

Eu: “está funcionando?”
Amanda: “sim”
Eu: “está calma agora?”
Amanda: “sim”
Eu: “eu conversei com os funcionários. Eles disseram que você está reagindo bem a isso e que não precisaram dopá-la”
Amanda: “é verdade. Estou ficando melhor com os sons. Mexem com minha mente. Posso ficar sozinha?”
Eu: “claro”

Deixei-a em paz. Ela está melhorando e logo sairá dali.

22º dia

Ela estava agitada. Outra vez. Cadê a caixinha? Ela não deveria estar com a caixa?

30º dia

Eu: “onde está a caixa?”
Amanda: “os funcionários pegaram. Eles ainda estão falando...”
Eu: “para me matar?”
Amanda: “sim”
Eu: “eles já lhe falaram o que querem de você?”
Amanda: “o mesmo que você. Me ajudar. Eles disseram que não preciso da ajuda de mais ninguém... e que estou bem aqui. E eles estão certos, sabe? O mundo fora daqui é ruim.”
Eu: “por outro lado, é maravilhoso. Verá quando sair."
Amanda: “fico mais segura aqui”

Ela está apontando um revolver para minha cabeça enquanto escrevo. Malditas vozes. Não é culpa minha. É delas... Por culpa delas fui parar nesse hospício, por culpa delas fiquei louca... E é por culpa delas que vou morrer agora.









Bloco de notas encontrado em um hospital psiquiátrico da Gávea, no Rio de Janeiro

próximo ao corpo de Amanda Ishida de 32 anos. Segundo enfermeiros, Amanda sofria de esquizofrenia e dupla personalidade. Se encontrava muitas vezes conversando consigo mesma, ora imitando uma psicóloga, ora imitando uma mulher com problemas mentais, simulando uma entrevista. Chegou a matar uma recepcionista, cujo nome era Ellen Tavares Almeida. “Tiveram que dopá-la três vezes ao dia para não acontecer novamente” disse um dos funcionários no dia do assassinato, que aconteceu 11 meses após o suicídio da paciente. “Ter sofrido tudo aquilo e ouvir vozes falando em sua cabeça o tempo todo não deve ser fácil. Creio que ela esteja melhor agora” disse Alana Ishida, irmã de Amanda, que a visitou no mesmo dia da morte da suicida, descobrindo assim a tragédia.

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